quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Nem mesmo vencido assine!


Coimbra,
O tecto do velho casarão hospitalar só não caiu porque isto da matéria às vezes resiste muito.
Era na hora da aceitação. A ficha pedia respostas curtas e concretas.
- Profissão?
- Meretriz.
- Filhos?
- Oito.
- Quantos?!
- Oito.
- E todos desde que…
- Todos.
Serena, como se tivesse dito uma coisa sem qualquer importância, continuou de pé, encostada à parede.
- Sente-se.
- Com licença.
Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco, e continuou a responder.
- Abortos?
- Nenhum.
- Nenhum?!
- Não senhor.
- Na sua vida, de mais a mais…
- Nenhum. Nunca quis.
- E os filhos? Vivos ou mortos?
- Todos vivos e sãos.
- Criados lá?!
- Pois.
As letras do assento vacilavam, inseguras, no papel. Firme, só ela, desgraçada, mas com a sua folha de mãe corrida e limpa.
- Muito bem. Suba.
O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada, e a parturiente teve alta esta manhã.
Vou mandar-lhe umas coisas – prometeu um colega, rendido a semelhante grandeza. E acrescentou, só para mim:- Quero auxiliá-la. Isto é tudo uma miséria, mas, diante de uma pureza assim, é preciso que ao menos a gente só assine vencido.
- Acho bem que a proteja – respondi-lhe, a olhá-lo bem. – Mas se quer de facto ajudá-la, siga-lhe o exemplo, e nem mesmo vencido assine.
Miguel Torga, in Diário (Vol. II)

8 comentários:

Anónimo disse...

Inquietações:

Se a vida é eterna, se somos eternos e engendrados amorosamente em Deus desde toda a eternidade, porquê esta obsessão que os humanos têm apenas com a vida terrena (aquela que começa na concepção e termina na morte)?

Porque não aprofundamos mesmo a questão e, uma vez que existimos desde toda a eternidade, isto é, antes da concepção e para além da morte, não pomos a hipótese de talvez, sim talvez, nem sempre seja bom nascer em determinadas circunstâncias?

E se a entidade que já somos antes, estiver sujeita a este condicionalismo fisiológico da concepção, independentemente da sua vontade?

Se já é uma Vida , porque o condenamos sempre a uma existência terrena seja ela favorável ou não?
E se essa vida/alma tiver outras oportunidades de se vestir com um outro corpo humano, em outro momento de concepção impregnado de amor, (sim, porque acredito que esta é apenas uma vestimenta para a minha alma)?


Sendo assim, pode ou não pode ser um acto de amor, interromper uma gravidez? E pelo contrário, prossegui-la um erro grosseiro e egoísta, uma irresponsabilidade?

E já agora, este apego desmedido à vida e o apego que impomos a todas as mães para terem os filhos quer ela queira quer não, não será apenas um vício?

Um vício que se manifesta em tantas coisas, (por exemplo em ter filhos para cuidarem de nós na velhice e em todos os os actos de egoísmo tantas vezes disfarçados de abnegação), mas que se manifesta principalmente nesta absoluta doentia relação com a morte que as sociedades cultivam.

Acredito que Deus é Amor. E sinceramente acho que na infinitude Dele e da Vida, não dará assim tanta importância a esta ideia tão limitada da concepção que fazemos da vida apenas terrena.
"Deus dá a Vida, só Deus a pode tirar" Exactamente : tirar a vida, podemos dizer que nos tira a vida (terrena) a todos, não obstante, não deixa de nos amar ! Muito pelo contrário (acho eu)É o nosso assassino amoroso por excelência! Se a vida terrena fosse assim tão intocável, Ele, que é de uma Sabedoria e Amor infinitos... tirá-la-ia logo a todos, sem excepção?

Tenho pensado mesmo muito sobre o que Cristo faria neste referendo. Por todas estas razões, custa-me a crer que ele impusesse uma continuação de gravidez a qualquer mulher que o não desejasse profundamente.

Mas isto sou eu... talvez errada, como todos podemos estar errados e só um dia no seio de Deus teremos a resposta. Sendo assim, porquê impor as nossas ideias a todos os outros nossos irmãos, enfiarmo-nos nas suas consciências e fazermos de Deus?

Ver para crer disse...

Só Deus existe desde toda a eternidade. De outro modo seríamos deuses.
Porque há-de ser mal roubar, já que só se rouba a quem tem?!
Porque há-de ser mal ferir e matar, etc., etc....
O relativismo explica todas as tomadas de posição, desde as mais bizarras.

Caros Amigos disse...

Linda história de uma mulher que respeitava a vida!!!
De facto não há nada de mais sagrado...

Danilo disse...

"Tenho pensado mesmo muito sobre o que Cristo faria neste referendo", disse nossa amiga anônima.

Por trás, está implícita a idéia "Cristo sim, Igreja não", pelo menos, "nem sempre, só se eu concordar".

O que Cristo faria é o que a Igreja diz, já que não há contradição possível entra a Cabeça e seu Corpo. Nisso temos fé firme, pois cremos na Igreja. Como instituição humana, falível com certeza; mas também divina e com a garantia da infalibilidade em temas como os do aborto.

A Didaqué, escrito do primeiro século cristão, nos dá também o mais claro testemunho de que esse ensinamento é constante e remonta aos apóstolos, que comeram e beberam com o Senhor.

Não é preciso pensar muito para saber o que Cristo faria. Basta ouvir a Igreja.

Maria João disse...

Daqui a pouco relativiza-se tudo...

Onde é que vão parar os direitos universais?

Anónimo disse...

Ver para crer, danilo e maria joão,

obrigada pelas vossas respostas.

Como disse, eu não sei se estou certa ou errada, apenas quis partilhar estas ideias que vieram ter comigo quando reflecti seriamente sobre o assunto, sem me limitar a ouvir uns e outros.

Dentro da igreja também
há opiniões contrárias sobre esta matéria do referendo.

Danilo, apesar de ouvir a Igreja, isso nunca me impedirá de pensar com a minha própria cabeça e ouvir a minha própria consciência.

Aliás,

"Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, quando era professor de Tubinga, escreveu um texto, pouco antes da Humanae Vitae (1968), que Hans Küng, seu colega e amigo, transcreve, agora, nas suas Memórias. Só posso deixar, aqui, um fragmento: "Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja."

"Como dizia Tomás de Aquino, só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado
(excertos do artigo "POR OPÇÃO DA MULHER" de Frei Bento Domingos no Jornal Público que aconselho a ler na íntegra.
Com Amizade,
A.

J disse...

Ver para Crer,

Gostei imenso do post, admiro Miguel Torga, e admiro ainda mais quem tem a coragem de defender a vida humana.

Um grande beijinho

Marlene Maravilha disse...

Muito bonito mesmo!!Como sou mãe admiro e entendo a posição dela pelos filhos!!
beijos