sexta-feira, fevereiro 23, 2007

A cruz e o amor


O papa Bento XVI, na sua mensagem para esta Quaresma de 2007, convida-nos a olhar para Cristo crucificado.
Olhar Jesus na cruz é contemplar o amor de Deus pelos homens. Ele veio ao mundo para nos salvar. E fez tudo o que era necessário para que isso se realizasse. Olhar o crucificado é, pois, abrir-se ao insondável amor com que Deus nos ama. Porque a morte de Jesus, o Filho de Deus, é a mais radical expressão do amor de Deus por nós, contemplar o Crucificado é o caminho mais directo para nos abrirmos a esse amor infinito. Também aí, e sobretudo aí, Cristo é o caminho para o Pai.
Não têm razão os que acham que os cristãos valorizam e olham demasiado para o crucifixo.
«É no mistério da Cruz que se revela plenamente o poder incontível da misericórdia do Pai celeste» – escreve o Papa. «Para reconquistar o amor da sua criatura, Ele aceitou pagar um preço elevadíssimo: o sangue do seu Filho Unigénito. A morte, que para o primeiro Adão era sinal extremo de solidão e de incapacidade, transformou-se assim no acto supremo de amor e de liberdade do novo Adão. Pode-se então afirmar, com São Máximo, o Confessor, que Cristo 'morreu, se assim se pode dizer, divinamente, porque morreu livremente'».
Ao olhar a cruz, começamos por meditar no que leva alguém que curava, expulsava os demónios e até dava nova vida aos mortos, a sujeitar-se ao suplício da crucificação. Só a amor explica tal doação. Começamos por acreditar nesse amor. «Mas o amor de Deus por cada um de nós pode tornar-se experiência vivida e mesmo sentida. A generosidade absoluta desse amor comove-nos; a ânsia que Deus manifesta de nos amar e de receber o nosso amor, desperta dinamismos profundos, escondidos no nosso coração. Não é só Deus que se sente atraído por nós; no mais íntimo de nós mesmos sentimo-nos atraídos por Deus e essa é uma atracção de amor» – como escreve o Cardeal Patriarca.
E o Papa convida-nos insistentemente a olhar para Cristo trespassado na Cruz! É Ele a revelação mais perturbadora do amor de Deus. Na Cruz é o próprio Deus que mendiga o amor da sua criatura: Ele tem sede do amor de cada um de nós.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Palavras leva-as o vento


Com facilidade se ouve criticar a Igreja ora pelo que faz ora pelo que não faz. Criticar é fácil!
Um dia numa reunião de grupos cristãos de apoio social alguém dizia que na cidade onde vivia, no caso Coimbra, havia muita gente a precisar de ajuda e não conhecia ninguém que levantasse uma palha.
O que dirigia a reunião perguntou-lhe onde morava. Lá lhe disse a rua e a cidade. Calhou que aquele homem vivia mesmo numa rua onde funcionavam três serviços de apoio social da Igreja. E ele não conhecia nenhum! Nem o que lhe ficava mais próximo...
Corria acesa a campanha eleitoral na Bélgica. Um deputado comunista dirigia a palavra a milhares de operários, em Bruxelas. Depois de ter apregoado a liberdade, criticado o capital, defendido as nacionalizações, elogiado os trabalhadores, exaltado o povo, atacou duma maneira agreste e desenfreada a Igreja Católica.
Acabado o discurso, perguntou se alguém desejava tomar a palavra. Adiantou-se um operário que disse assim:
– Eu não estudei, e não sei responder ao que disse o orador. Conto apenas um caso:
Há meses adoeceram os meus dois filhos. Uma freira vinha com frequência visitá-los, trazendo-lhes sempre alguma ajuda. As crianças curaram-se. Como a doença era contagiosa, a minha mulher caiu de cama, logo a seguir, com o mesmo mal. A Irmã levou as duas crianças porque ninguém em casa podia tratar delas. Tomou também sobre si o cuidado da minha mulher, que finalmente começou a levantar-se. Então caí doente também eu, mas a Irmã vinha sempre visitar-nos, trazia remédios, ajudava a minha mulher na vida da casa e tratava-me com muito jeito e caridade. Por último a Irmã contraiu também uma doença e não a tornámos mais a ver. Soube hoje que morreu. Não tenho mais a dizer (Mensageiro do Coração de Jesus, de Itália, 1951).
A impressão causada por estas palavras não se descreve. A palavra humilde e sincera daquele operário valeu mais que todos os argumentos.
Disse Jesus: «Conhecerão todos que sois meus discípulos se tiverdes caridade uns para com os outros» (Jo 13, 35). E o apóstolo São João: «Filhinhos, não amemos de palavras e com a língua, mas por obras e de verdade. (1 Jo 3, 1f3).

domingo, fevereiro 11, 2007

Resposta a Frei Bento Domingues


Frei Bento Domingues escreveu um artigo pelo menos polémico. Vindo donde vem nem é de admirar!...

Fica aqui a resposta que lhe deu no Público o conhecido Jesuíta P. António Vaz Pinto:

Importante, para todos, é informar e formar a consciência para que cada um possa decidir e agir em conformidade com a recta razão que é a norma ética. E é aqui que nos devemos situar: o que é conforme à razão, às exigências de natureza humana individual e colectiva?

Ao regressar ao Porto, domingo à noite, debrucei-me sobre a crónica de Frei Bento Domingues, O.P., "Por opção da mulher", como tantas vezes faço e tantas vezes com tanto gosto e proveito... Infelizmente, desta vez, brotou em mim a desilusão, a discordância e a necessidade imperiosa de lhe responder, no contexto de polémica instalada no país, mas muito para lá dela...Limitado pelo tempo e pelo espaço, irei cingir-me a três tópicos referidos na sua crónica, que considero os mais importantes:
1. Consciência e norma ética.Pode ser útil referir Aristóteles, S. Tomás de Aquino ou J. Ratzinger, o actual Papa, para relembrar que a suprema instância de decisão ética para o cristão, acima da própria suprema autoridade eclesiástica, o Concílio ou o Papa, é a consciência individual. É doutrina mais que tradicional. Mas é bom ter presente que este princípio não vale apenas para a questão do aborto; se alguém se afirmar, cristão e simultaneamente, em consciência, defensor da escravatura, da pedofilia ou do racismo, que lhe dirá Frei Bento? Que lhe pode opor? Fica entregue a si próprio e a Deus...
Importante, para todos, é informar e formar a consciência para que cada um possa decidir e agir em conformidade com a recta razão que é a norma ética. E é aqui que nos devemos situar: o que é conforme à razão, às exigências de natureza humana individual e colectiva?
2. A problemática jurídica e penal e os limites da tolerância.Numa sociedade laica e plural como é a nossa - e estou muito contente que assim seja -, os cristãos ou a Igreja não devem nem podem impor a sua "visão" aos outros membros da sociedade. Mas, tal como os membros de outras confissões, agnósticos e ateus, têm todo o direito e até o dever de propor valores e princípios, na busca de um denominador comum que permita a convivência, nunca totalmente pacífica, em sociedade...
É precisamente disso que se trata: o ordenamento jurídico de uma dada sociedade, incluindo o ordenamento penal, tem pressupostos e valores donde brotam as diversas normas. Por exemplo, em Portugal, é proibido o roubo, o homicídio, o racismo, a difamação, etc. Quer isto dizer que a sociedade portuguesa, através dos seus legítimos representantes, legisladores, assume como valores e pressupostos a propriedade, a vida humana, a igualdade racial, o bom nome, etc., consagrando-os como "bens jurídicos", a preservar e defender.


Essa é que é a questão que se coloca a todos nós, no próximo referendo: independentemente da nossa religião (ou ausência dela) em que modelo de sociedade queremos viver? Que valor consideramos maior? A vida humana, raiz de toda a dignidade e de todos os direitos, "inviolável", como diz a nossa própria Constituição (Artº 24, n. 1), ou consideramos que outros valores, vg. saúde, segurança, não humilhação, valem mais do que a própria vida?Dir-se-á: mas ninguém é obrigado a abortar; proibir o aborto é impor aos outros as nossas convicções: proibir a escravatura, o racismo e a pedofilia também é impor as nossas convicções àqueles que pensam doutra maneira... ou será que essas proibições devem desaparecer do Código Penal? Em cada momento, cada sociedade faz escolhas de carácter ético e, embora possa e deva, nas nossas sociedades pluralistas, deixar largas margens de liberdade e não se intrometer na vida e moral privada de cada um, tem de assegurar as normas jurídicas mínimas de convivência social. Quando a liberdade de um colide com a vida e a liberdade de outro, a sociedade pode e deve fazer escolhas e estabelecer limites. E estas escolhas são feitas sabendo-se de antemão que haverá quem não concorde, que haverá sempre maioria e minoria....


O pluralismo não pode ser ilimitado e a própria tolerância levada ao extremo autodestrói-se...


3. "Por opção da mulher"Ao contrário da actual lei - com a qual não concordo, evidentemente (mas que tem o mérito de manter o princípio do respeito pela vida humana e da ilicitude do aborto, apenas abrindo excepções por razões ponderosas) - o que é proposto na pergunta agora colocada a referendo, embora se refira apenas a "despenalização do aborto", corresponde a uma realidade totalmente diferente: desde que praticado em estabelecimento de saúde autorizado e até às dez semanas, a prática do aborto, de facto e de direito, fica totalmente liberalizada e até financiada, dependendo apenas da vontade da mulher. Até às dez semanas, é o total arbítrio...Será isto justo, saudável, estará de acordo com os fundamentos do modelo de sociedade, defensora dos direitos humanos e da dignidade da vida humana, que demorou tantos séculos a construir?Se é certo que a mulher, na sociedade e na Igreja, foi e continua a ser injustamente discriminada, não parece sensato nem justo que se introduza agora uma discriminação positiva, em favor das mulheres, no campo jurídico e penal... O ser humano - homem e mulher - é capaz do pior e do melhor - sem distinção de sexo... Apesar de saber bem o rol de sofrimento da mulher que muitas vezes acompanha a prática do aborto, as pressões, sociais, familiares e afectivas a que está sujeita (muitas vezes do próprio homem que contribuiu para a concepção do feto), entregar à mulher, em total arbítrio, a decisão de vida ou de morte de um ser humano não é justo nem democrático. E diria exactamente o mesmo, é evidente, se o homem fosse o decisor...


Caro Frei Bento, espero encontrá-lo na próxima curva da nossa história, do mesmo lado, o lado da defesa dos direitos humanos, sem sim, nem mas...

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Nem mesmo vencido assine!


Coimbra,
O tecto do velho casarão hospitalar só não caiu porque isto da matéria às vezes resiste muito.
Era na hora da aceitação. A ficha pedia respostas curtas e concretas.
- Profissão?
- Meretriz.
- Filhos?
- Oito.
- Quantos?!
- Oito.
- E todos desde que…
- Todos.
Serena, como se tivesse dito uma coisa sem qualquer importância, continuou de pé, encostada à parede.
- Sente-se.
- Com licença.
Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco, e continuou a responder.
- Abortos?
- Nenhum.
- Nenhum?!
- Não senhor.
- Na sua vida, de mais a mais…
- Nenhum. Nunca quis.
- E os filhos? Vivos ou mortos?
- Todos vivos e sãos.
- Criados lá?!
- Pois.
As letras do assento vacilavam, inseguras, no papel. Firme, só ela, desgraçada, mas com a sua folha de mãe corrida e limpa.
- Muito bem. Suba.
O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada, e a parturiente teve alta esta manhã.
Vou mandar-lhe umas coisas – prometeu um colega, rendido a semelhante grandeza. E acrescentou, só para mim:- Quero auxiliá-la. Isto é tudo uma miséria, mas, diante de uma pureza assim, é preciso que ao menos a gente só assine vencido.
- Acho bem que a proteja – respondi-lhe, a olhá-lo bem. – Mas se quer de facto ajudá-la, siga-lhe o exemplo, e nem mesmo vencido assine.
Miguel Torga, in Diário (Vol. II)